Aconteceu de novo. Fui me deitar com o celular na mão depois do almoço e, acidentalmente, passei uma hora no TikTok. Começou de um jeito muito agradável. O meu algoritmo já me conhece bem e entrega o que eu quero: uma mistura de receitas, transformações capilares, tapetes sendo bem lavados e o maravilhoso influencer que bate o martelo se bodybuilders são naturalmente sarados ou se é tudo anabolizante.
Só que o TikTok é uma rede de vídeos rápidos. Então consumir essa mistureba de conteúdo não deveria me custar mais do que 10 minutos. E lá se foi uma hora. Depois de 10 minutos de deliciosos conteúdos eu poderia ver um episódio de Succession, ler várias páginas de um livro, tirar uma bela soneca, olhar para o teto, fazer e tomar um café, ligar para uma amiga, tomar sol, cozinhar, fazer uma aula de spinning, dar uma volta no quarteirão, um pulo na academia, obcecar com um tema novo, escrever.
Eu poderia fazer uma lista enorme de coisas não necessariamente úteis mas mais prazerosas do que o que eu vivi nesses 50 minutos, quando o TikTok perdeu a graça, mas continuei lá. O que me parece uma contradição muito louca, já que, geralmente, eu costumo escolher o prazer apesar de toda a minha herança cristã.
Me senti quase enganada quando fui pesquisar os motivos pelos quais passamos tanto tempo no TikTok. Parece um consenso científico dizer que é muito prazeroso. Todos também parecem concordar que este tempo passando o dedo na tela é responsável por nossa recente dificuldade de concentração, problemas no sono, consumismo, dismorfia corporal. Que tipo de prazer é esse, então?
Neste ensaio publicado na New York Times Magazine em 2021, Kyle Chayka fala sobre uma busca pelo vazio como um retrato da sociedade daquela época: "Ninguém parece desejar nada; não há entusiasmo para o desejo nesta cultura, apenas o desejo de que possamos desistir dele". E foi aí que eu consegui ver a diferença. Todas as mil coisas muito prazerosas que eu poderia fazer naqueles 50 minutos dependiam do meu desejo, da minha escolha, de algum tipo mínimo de ação. E aí complica, né?
Apesar da má fama recente da psicanálise, a minha investigação me levou ao livro póstumo de Contardo Calligaris. Em um dos capítulos, o psicanalista italiano discorre sobre como o hedonismo, a procura pelo prazer, "pede um esforço contínuo de atenção ao mundo e um aprendizado sem fim."
Calligaris defende que o hedonismo é um projeto de dedicação e atenção ao mundo. Procurar o prazer não tem a ver com imediatismo, não é ter pressa em gozar e curtir, mas envolve, sim, um esforço constante para manter a atenção à vida, essa coisa que não nos reserva só coisas felizes. Mas que, quando a gente consegue, pode ser até bem interessante.
É possível ser hedonista com o celular na mão? Sim e não. Enquanto eu estava conscientemente escolhendo ver tapetes, receitas, transformações capilares e cortes do Casimiro, eu estava apreciando. Mas em dado momento o iPhone se transformou em um sintoma de como está cada vez mais difícil prestar atenção no mundo, o que pode nos condenar a um buraco de distração que, no meu caso, vem com uma pitada de angústia.
Isso acontece quando estou deitada na cama depois do almoço com o celular na mão. Mas esse buraco de distração também atinge pessoas que estão teoricamente vivendo os momentos mais interessantes das suas vidas, como, por exemplo, em uma viagem. Morando em uma cidade turística, me cansei de ver turistas tirando fotos da catedral de Milão e logo se encaminhando para a Galeria Vittorio Emmanuele, tirando outra foto e seguindo para uma terceira foto, desta vez, com um Aperol Spritz, com o olho sempre na tela.
Como se, mesmo após um voo muito longo e caro, ainda estivessem vivendo todas essas experiências através da tela do celular por onde eles já viram essas imagens muitas vezes, de vários ângulos diferentes. Sem parar um minuto para observar o que está em volta, a diferença que faz viver aquilo ali, com presença. Desatentos, desconcentrados, mas belíssimos, de fazer inveja no feed. Aguardando algum momento extraordinário sem se dar conta de que o extraordinário está aqui. É só prestar atenção.
Uma lista de links para distrações conscientes
O livro 'O sentido da vida' de Contardo Calligaris
Este episódio do podcast Naruhodo sobre jejum de dopamina
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