🌿 Como se tornar um lÃder de seita
Todos os dias, um malandro e um otário saem de casa
Diz o ditado: todos os dias, um malandro e um otário saem de casa. Quando eles se encontram, fazem negócio. A frase é sempre mais bem ouvida na voz de Casimiro Miguel, quando o streamer reage ao programa Shark Tank. Melhor ainda quando ele diz que "se você não sabe se você é o malandro ou o otário, você é o otário".Â
Um dia desses, eu saà de casa. Almocei com três amigas em um restaurante longe daqui e passei 45 minutos no ônibus para voltar. Tempo suficiente para um senhor de 70 e poucos anos se sentar do meu lado e dizer: "A Itália está acabando, você sabia?". Como eu tinha tempo, tentei ser a malandra. "Como assim, cara?", provoquei, eu sei.
O senhor passou alguns minutos me explicando que um grande meteoro se aproxima da cidade de Milão. Ele ensaiou começar uma tese dizendo que a culpa era dos estrangeiros, mas, ouvindo meu sotaque, tentou argumentar por outro lado. Afirmou que, sempre que há uma "diferença muito grande entre as pessoas", cai uma pedra enorme e acaba com tudo. Que já tinha ocorrido na Turquia antes e que agora é a nossa vez.Â
Como ele já estava fechado com uma teoria muito mais interessante do que qualquer coisa que eu pudesse argumentar – e ainda faltava muito pra minha parada – fiz outra pergunta: "Mas como o senhor faz para saber todas essas coisas?" Ele imediatamente sacou o celular do bolso, abriu o aplicativo Facebook e disse que eu deveria acompanhar a TV Focus.Â
Trata-se de um canal italiano de TV aberta que mistura documentários, ciência e pseudociência. E que provavelmente aparece como assinatura em fake news do Facebook em conteúdos não necessariamente produzidos por eles. Consigo imaginar tudo isso porque o senhor logo em seguida me perguntou se eu tinha tomado as vacinas contra a Covid. Eu disse que sim e ele emendou dizendo que eu tinha de "limpar meu corpo da vacina" tomando água com bicarbonato de sódio todos os dias, como ele mesmo faz.Â
O vÃdeo sobre a vacina não carregou a tempo de ele conseguir me mostrar antes de descer na parada dele. E eu segui a viagem sentindo que nós dois tentamos ser malandros. Mas que nenhum negócio saiu deste encontro de otários.Â
Malandros e otários são grandes personagens de um dos meus conteúdos favoritos dos últimos tempos: Como se tornar um lÃder de seita, disponÃvel na Netflix. A série documental parte da tese de que, neste mundo de gurus, ou você é a presa, ou é o predador. O que me parece essencialmente a teoria brasileira popularizada por Casimiro.Â
A cada episódio, o público conhece a história de um lÃder de seita, sempre em forma de tutorial. Então, os capÃtulos têm nomes como "Construa sua base", "Aumente seu rebanho", "Molde suas mentes". A cada nova frase, um susto. Os especialistas entrevistados não estão tratando de marketing ou redes sociais, mas falam frases como "Para ser um lÃder de seita de sucesso, você precisa aumentar o número de seguidores" ou "Tenha um bom relacionamento com a imprensa".Â
Um passo a passo que me remete a um formato muito popular hoje nas redes sociais: "gurus" que ensinam seguidores vulneráveis a ganhar dinheiro na internet. Meu algoritmo ainda não me entregou influenciadores que prometem a vida eterna, como os lÃderes de seita old school mostrados no documentário.Â
Se eu passar muito tempo rolando o dedo na tela, posso encontrar várias formas de ganhar dinheiro dando cursos sobre dar cursos, ou lançando um curso, ou fazendo lives gratuitas todos os dias essa semana para que, no fim, muitas pessoas comprem meu curso e eu consiga ficar muito rica em 7 dias. De quebra, posso ter milhares de seguidores que concordem com tudo o que eu fale e que façam tudo o que eu diga. Mesmo que seja tomar água com bicarbonato de sódio. Ou subir uma montanha debaixo de chuva.
De certa forma, a promessa de "vida eterna" e de "iluminação" dos gurus dos anos 1980 virou uma promessa de "fazer seu primeiro milhão" através de lançamentos de produtos que não entendemos muito bem. E talvez eu não entenda muito bem porque não tenho um "mindset de prosperidade". Ou porque tenho um modo meio cÃnico de ver essas coisas: um mecanismo de defesa que eu poderia ensinar no meu curso.Â
O que eu consigo observar, do lugar do recalque de quem não fez seu primeiro milhão semana passada, é que os seguidores das seitas contemporâneas não são sempre otários. Primeiro porque a realidade, assim como ela é, pode ser muito desinteressante, e é por isso que precisamos tanto da ficção. De um meteoro que se aproxima, de um retiro para purificação da alma, de um guru que vai nos guiar para uma existência cheia de emoções.Â
Todo mundo – malandros ou otários – quer um pouco de amor e de esperança. Sentir que pertence a algo maior, que existe um grupo onde possamos nos sentir acolhidos, que nossa vida pode mudar radicalmente de um dia para o outro. E pode. Basta você comprar meu curso.